O boteco do Seu Lair não tinha nome. Na placa pendurada por sobre a porta, apenas sobrevivera ao tempo a propaganda da Cervejaria Americana - tendo o nome do estabelecimento se perdido ao vento e gotas de chuvas de mais de três décadas.
O boteco do Seu Lair também não tinha localização definida. Era em lugar nenhum. Ali não era o Bairro Fábrica, apesar da possibilidade de se ver a Rua Bernardo Mascarenhas. Não era o Bairro Democrata, mesmo que da calçada fosse possível avistar os bambuzais que ainda circundavam o bairro. Muito menos era no meu querido Mariano Procópio - morada dos justos - mesmo que as mesas de ferro, tremessem quando passava o trem. Mas era ali, muito perto disso tudo. Onde nasce o subúrbio da minha querida Princesa de Minas
O trem corta o trecho que separa esse lugar nenhum (foto: Anderson Batista Evangelista Lima. original aqui) |
Seu Lair - ainda que a contragosto - cedeu nome ao local. Era um dos mais ágeis donos de boteco que já passaram pela terra. Trocava as bandejas da estufa com velocidade ímpar, sem perder de vista jamais os desejos de seus fregueses. O molho de moela baixava nível, recarregava-se com destreza. As tiras de torresmo rareavam, antes mesmo que sentíssemos o cheiro do óleo quente na cozinha, já estavam de volta. Os vidros de batata em conserva, os ovos cozidos e tingidos de rosa ou azul, as linguiças - que lá eram claramente denominadas de mineiras - nada faltava enquanto houvesse um bravio guerreiro de pé.
O balcão de madeira nobre, antigo e calejado pelo passar do tempo. Adquirido de segunda mão. Paredes azulejadas. Chão de ladrilhos hidráulicos. E ai de quem pedisse para ir ao banheiro. No boteco do Seu Lair, havia "mictório".
Nos fundos abatia as galinhas, armazenava o sangue e promovia aos sábados um frango ao molho pardo. Incomparável.
O mundo girava, as fábricas se fechavam, o asfalto reinava, a poeira subia, as enchentes tomavam as canelas dos incautos, e Seu Lair permanecia sereno. Apenas franzia a testa quando se esforçava para ouvir as notícias no rádio, que ele insistia em generalizar sempre como as notícias da "Rádio Industrial".
O rádio, um pequeno mas belo Motoradio ficava pendurado no batente que dava acesso à cozinha. O batente era torto, mas torto de dar medo em engenheiro. A casa era uma das poucas que resistira a enchente de 1940, e nunca fora reformada. Era a Torre de Piza dos bebuns, manguaceiros, aventureiros e todo tipo de figura que ali pousava.
Seu Lair um dia - desses comuns onde ele ouvia a ronda policial na Rádio Industrial - morreu fritando torresmos. Sentiu-se mal, sentou na cadeira e nem para morrer fez estardalhaço. Virou cadáver ali, sentadinho, com o pano de parto no ombro.
O velório - pasmem, caros leitores - foi no próprio boteco. Eu confesso que nunca havia presenciado esse louvor. mas velaram o bom homem ali, no centro da birosca. Todo povo de lugar nenhum, a conjunção daquelas três pérolas suburbanas que davam vida a entrada da zona norte da cidade, estiveram presentes, a fim de dar um último adeus ao bom homem. Nesse dia, a rua cheirava cachaça e óleo. Um cheiro forte de vida, mais forte que incenso ou defumador, comum em dias de morte.
Eu tomei minhas bagaceiras.
As pessoas pareciam felizes e resignadas pela missão cumprida de Seu Lair e prestavam reverências ao caixão.
E as estufas estavam cheias, impecáveis, como sempre.